Blog do Paraíso: A tragédia de Rali (VI parte)

segunda-feira, 2 de julho de 2007

A tragédia de Rali (VI parte)


Não vejo nenhum muro em volta da cidade. Não estou amarrado a nenhuma corrente. Entretanto, sinto-me preso. Na invasão da Estrutural, não há nada de interessante para se fazer. Há casas, ruas e igrejas. As pessoas vivem acuadas. Vão da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Nos finais de semana, vão à igreja. A opção dos “jovens de bem” nos finais de semana também é a “casa de Deus”.

Resolvi aceitar de vez essa condição, afinal não tenho para onde ir. Outra coisa, a cidade é a minha cara. Os habitantes falam a mesma língua que eu. São da mesma etnia: mestiço. O idioma que falamos não é o mesmo que está na gramática e que é falado por moradores dos grandes centros urbanos brasileiros. Não me sinto igual a eles. Eles também devem pensar a mesma coisa. Afinal, neste país, há duas nações brutalmente separadas pelas condições socioeconômicas.

Portanto, este é o meu lugar. Não quero me misturar com a outra nação. Eles devem ter o mesmo desejo. Pois somos perigosos. Pobreza virou sinônimo de violência. Mas ninguém se questiona porque isso aconteceu. Veja só meu caso. Quando completei 12 anos, entendi o que era ser pobre. Desejei um tênis legal, de marca e na moda, mas não pude comprar. Eu queria dar um presente para Natasha, também não consegui. Para conquistá-la, precisava vestir roupas legais. E não as encardidas e furadas que eu usava. Para piorar a situação, tornei-me dependente químico. Meus pais mal tinham dinheiro par me alimentar. Portanto, como satisfazer meus desejos sem capital?

- E aí, Rali!
- E aí, João!
- De boa?
- De boa!
- Só!
- Só!

João veio conversar comigo quando eu matutava essa questão, sentado na calçada da esquina.

- João, estou quebrado.
- Mas quando foi que você teve dinheiro na vida, Rali?
- Pois é, cara. Estou cansado de andar assim: pé-rapado.
- Eu também, bicho. Estou cansado de serrar bagulho dos outros. Agora mesmo vim te perguntar se você tem algum aí.
- Não, cara. Pior que não.
- Oi, Rali! Tudo bom?
- E aí, Natasha! Tudo.
- Cara, quem é essa gatinha que acabou de passar?
- É a minha vizinha, João. Vou alugá-la.
- Ah! Sem chance, bicho. Veja só seu estado. Pé sujo, bermuda desbotada e essa blusa... Além de encardida, rasgada.
- E você, João? Também não está muito diferente.
- É, mas não fui eu que disse que ia alugar aquela princesa.
- Ah! Vai se lascar.
- Qual é, velho? Ta apelando é?
- Você não disse que estava atrás de um bagulho? Vai lá. E aproveita e traz para mim também.

João foi numa “boca de fumo” próximo a uma igreja evangélica. Os traficantes estavam cansados de “bacanizar” bagulho para ele.

- Qual é, bicho? É cincão.
- Pô, velho. Você sabe que não trabalho. Ainda sou menor de idade.
- Azar seu, mané. Aí... Por que você não vem comigo fazer uma “fita”? Se der certo, racho a grana contigo. Se der errado, você vai ter que assumir a culpa. Dizer que a “máquina” é sua e tudo mais.
- Eu! Por que eu?
- Pô, mané. Porque tu é de menor. Não vai ficar preso.

O vício falou mais alto que a razão. João aceitou a proposta. Depois disso, ele desapareceu. Fiquei sem vê-lo por três meses.

Num certo domingo, resolvi ir à missa. Não era de meu costume, mas quando descobri que Natasha estava sempre lá, passou a ser. Nesse dia, sentei ao lado dela.

- Oi, Rali!
- Oi!

Antes de iniciar a missa, batemos um papo. Percebi que ela usava um anel de compromisso.

- Você está namorando, Natasha?
- Sim. Acho até que você conhece meu namorado.

Fiquei imaginando qual seria o playboy que tinha presenteado Natasha com anel tão caro. Não me veio na memória nenhum.

- Não, Natasha. Não conheço ninguém que tenha dinheiro para comprar um anel tão bonito e visivelmente caro. Quanto foi?
- Não sei. Pergunta para o meu namorado. Ele está vindo logo aí.

Não pude acreditar no que vi. Aquele menino que andava tão mal vestido quanto eu não parecia a mesma pessoa. Usava agora roupas novas e de marca. João estava nos “panos”. Sem contar minha musa que ele acabara de roubar. Desejei profundamente estar no lugar do meu amigo.

- E aí, Rali!
- É você, João? O que aconteceu?
- Depois eu te dou idéia. Vamos assistir a missa, pois o padre já chegou.

Continua...

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