Blog do Paraíso: O Aniversário da Ilha Maravilha

domingo, 19 de abril de 2009

O Aniversário da Ilha Maravilha


Capítulo II

Pousados nos fios que levam energia para as casas, os pardais cantavam e anunciavam o início de mais um milagroso dia. Um bom dia, conforme os raios do sol apareciam e revelavam o belo azul do céu. Os raios revelavam ainda as esquinas da rua e os cacos dos barracos.

Como de costume, Marciano Justino acordou por volta das 8 horas, lavou o rosto e bebeu o café feito por sua mãe, chamada de Clementina Justino. A comunicação entre Marciano e Clementina era mais por meio de gestos do que por palavras. De estatura baixa e um pouco redonda, a mãe de Justino era uma figura gozada, quase nunca saia de seu barraco. Quase nunca aparecia na badalada rua daquela pequena e isolada cidade. Muitos achavam até que Marciano não tinha mãe. O principal passatempo de Clementina era cuidar de suas galinhas. Eram doze e um galo.

Diferente de sua mãe, Marciano quase nunca ficava em casa. Como um serviço, ele tinha que está presente, diariamente, na esquina de sua casa. Também como no trabalho, e em qualquer lugar, ele fazia amizades com os seus vizinhos que, como ele, pareciam usar um uniforme. Chinelo, bermudão colorido e camiseta estampada com uma marca famosa. Uns usavam ainda um boné. Outros, apenas o chinelo e o bermudão.

Naquela manhã, sentado na calçada, tomando sol, Marciano foi o primeiro a chegar à esquina. Logo depois veio Hamixiaire. Em seguida Jacinto. Por último, Tião.

- Eu vi na TV que hoje vai ser o aniversário da Ilha Maravilha – informou Hamixiaire.

- Eu também vi – falou Marciano. Vai ter show de graça com uma ex-atriz pornô e uma cantora de Bahia.

- Já tem um tempão que eu não vou para a Ilha – lembrou Jacinto. Se brincar, têm é anos.

- Ah! Mas agora vai ser de boa porque o ônibus só vai cobrar um real – informou Hamixiaire.

Os companheiros de esquinas perceberam que havia todas as condições para, naquele belo dia, visitar a Ilha Maravilha. Cercada por cidades como aquela da famosa rua, Ilha Maravilha era a capital do país. O nome já dizia tudo sobre a capital. Ilha Maravilha. Grandes e belas construções. Urbanizada e limpa. Índice de qualidade de vida muito alto. Tratava-se de um pedaço do primeiro mundo inserido no terceiro mundo. Era como um oásis em meio ao deserto.

Pessoas como Marciano, Jacinto, Tião ou Hamixiaire não eram bem-vindas na Ilha; a não ser para prestar serviço de mão de obra barata. Só que nem isso eles estavam conseguindo mais. Logo, como pecadores expulsos do Éden, eles não podiam desfrutar as maravilhas da Ilha. O motivo não foi comer o fruto proibido, mas, sim, nascer pobre. O que impede a entrada na Ilha não é uma espada de fogo, apenas o alto preço da passagem de ônibus e, para outros lugares, os acessos somente para quem tem carro próprio.

No entanto, como um milagre, o governo anunciava, incansavelmente, nos meios de comunicação, que pessoas como Marciano, Jacinto, Tião ou Hamixiaire podiam adentrar no Éden.

- E aí, gente! Vamos fazer uma intera para levar um vinho? – sugeriu Marciano.

- Ué, faz aí, com os bichos – disse Jacinto.

- Eu tenho aqui só dois reais – falou Hamixiaire. O dinheiro certinho para a passagem.

- E você Tião?

- Ts! Sabe como é. A polícia recentemente prendeu um carregamento de drogas e, por isso, fiquei um tempo parado sem fazer nenhum dinheiro. Vou poder dar... Deixa eu ver aqui... Dez, vinte, cinquenta... Vou poder dar um real e cinquenta centavos.

- Pô, só isso. Vocês são foda! – protestou Marciano. Eu também não trabalho, mas tenho dinheiro porque, de vez enquanto, faço um bico numa obra qualquer. Mesmo assim, não vou comprar o tubão de vinho sozinho.

- Se você der mais um e cinquenta, assim como eu, dá para a gente fazer um quite. É bem gostoso com refrigerante de limão.

Os companheiros de esquina acordaram que levariam um quite para beber. Eles combinaram a hora que deveriam subir para a parada de ônibus, mas antes deveriam comprar duas garrafas de refrigerante de limão, cada uma por um real, e mais duas garrafinhas de cachaça de alambique por cinquenta centavos, cada. Eles beberam um pouco do refrigerante de cada garrafa para ter espaço para misturar a cachaça. Após os líquidos misturados, colocaram as garrafas de dois litros, cada, numa sacola e subiram para a parada de ônibus.

Assim como os companheiros de esquina, muitos outros jovens daquela cidade decidiram ir ao aniversário da Ilha Maravilha. A parada de ônibus, portanto, estava lotada. Logo, eles entraram em clima de festa. E já começaram a beber o líquido das garrafas.

Todos os ônibus com destino ao local da festa passavam completamente lotados. Foi difícil pegar um. Só depois do terceiro que passou lotado que eles conseguiram embarcar.

Durante a viagem, os companheiros de esquina secaram uma garrafa de quite. Eles chegaram à festa já bêbados. Não satisfeito com o efeito da cachaça, Tião sentiu vontade de dar uns tapinhas num cigarro de maconha. Instintivamente, Tião viu um sujeito e o identificou como maconheiro. Depois de uma conversa bem cordial, ele conseguiu, de graça, uma pequena quantidade da droga, suficiente para um fininho.

Havia muita gente no local da festa. Eram quase um milhão de pessoas. Muitas estavam bebendo e fumando. O clima estava tão liberal que Tião não teve receio de acender o cigarro de maconha no meio das outras pessoas. Logo a fumaça do fininho de Tião se juntou à fumaça de outros cigarros e a atmosfera ficou com o cheiro, ou catinga, de maconha. Dos companheiros de esquina, o cigarro só não passou pela mão de Marciano.

A festa estava muito animada. Tinha muita mulher bonita, o que deixou Marciano contente. Inclusive, em sua frente apareceu uma bela morena. Cabelo feito escovinha. Calça bem colada. Blusinha decotada e mostrando a barriga. Foram essas as características da morena que não deixaram Marciano prestar atenção na festa. Justino teve ímpeto de ir conversar com a morena, mas, como das outras vezes, não teve coragem de ir. Quando se trata de mulher, Marciano se torna uma pessoa muito insegura.

A morena, que estava acompanhada de outras belas mulheres, sentiu vontade de mudar de lugar e saiu de perto de Marciano. Sem vê mais a linda morena, Marciano voltou a prestar atenção na festa. Logo ele percebeu que não estava mais acompanhado por Jacinto, Tião e Hamixiaire.

Marciano procurou seus companheiros durante um bom tempo. A festa chegou ao fim e ele não encontrou ninguém. Marciano decidiu ir para a rodoviária pegar o ônibus de volta para casa, antes que eles parassem de rodar. Existe uma lei que determina às empresas manter ônibus durante toda a noite, no entanto, não é bem assim que as coisas funcionam.

Ao chegar ao ponto de ônibus, Marciano vê uma multidão se apertando para entrar no penúltimo ônibus para sua cidade. Era tanta gente que virou bagunça. Não havia nem fila. Foi preciso a polícia intervir para organizar a situação. Com socos, chutes e cacetadas a polícia conseguiu fazer com que quem estava dentro do ônibus se apertasse mais ainda para entrar mais gente. O ônibus ficou bastante lotado. Ainda assim, havia gente querendo entrar. Só que foi convencida pelos policiais a esperar o próximo ônibus.

Marciano teve medo da agressão dos policiais. Quase desistiu de pegar o próximo ônibus. Mas se convenceu que era melhor dormir em casa e, não, na rodoviária da Ilha Maravilha. Apesar de toda limpeza e organização da Ilha, sua rodoviária era imunda e desorganizada. Por todos os lados havia pedintes. Menores consumindo drogas e se prostituindo. Não era seguro passar a noite num local desses.

Marciano, portanto, foi para a fila e, para sua felicidade, entrou no ônibus sem levar nenhuma pancada dos policiais. Como o penúltimo, o ônibus saiu totalmente lotado. Se Marciano levantasse o pé, não encontraria lugar para colocá-lo novamente no chão.

Durante a viajem, a atmosfera do ônibus ficou igual a da festa: repleta de fumaça de maconha. Era do fundo do ônibus que a fumaça vinha. Era lá que alguns sujeitos faziam uma bagunça danada. Mas o pior ainda estava por acontecer. Depois de entrar na cidade, o ônibus parou no primeiro ponto. Como demônios, quem desceu começou a alvejar o veículo com pedras. Quando atingia de maneira certeira a janela, a pedra transformava o vidro em farinha. Os passageiros entraram em pânico. As mulheres gritavam e pediam para o motorista sair daquele ponto de ônibus. O motorista obedeceu. Enquanto o ônibus andava, as pedras continuavam batendo no veículo. Marciano observava atentamente para evitar que uma pedra o atingisse.

Chegando no próximo ponto, o ônibus, a pedido de um passageiro, parou novamente. E vieram mais pedras. Depois de parar umas quatros vezes, o motorista percebeu que o ônibus estava sendo perseguido. Ele decidiu não parar mais e mudou a trajetória da linha. Seguiu para a delegacia da pequena cidade pobre e violenta.

Marciano tremia de medo. Achou que os vândalos iriam seguir o ônibus até a delegacia, mas não foi isso que aconteceu.

Muitos passageiros ficaram feridos pelos cacos dos vidros e pelas pedras. Marciano teve sorte porque estava em pé, no corredor do ônibus e, por isso, teve mais facilidade de se esquivar das pedras.

Marciano decidiu não dar queixa. Assim que o ônibus parou na delegacia, ele se dirigiu, a pé, para sua casa, que não ficava muito longe. Deitado em sua cama, Marciano agradeceu a Deus por ter chegado são e salvo. Mas... O que teria acontecido com seus companheiros de esquina, se perguntava Marciano.

No dia seguinte, Marciano encontrou Tião com uma sacola cheia de celular e câmera fotográfica.

- Onde você conseguiu esses celulares e essas câmeras, Tião?

- Naquele momento que a gente se perdeu, eu, o Jacinto e o Hamixiaire, nos juntamos com um grupo de chegados meus e começamos a roubar esses celulares e essas câmeras.

- Vocês são doidos mesmo. E como vocês fizeram isso?

- Como tinha muita gente na nossa galera, foi muito fácil – explicou Tião. Escolhíamos a vítima e ficávamos atrás dela. Assim que ela pegava a câmera ou o celular do bolso para tirar fotos, um de nós metia a mão e tomava. Se o cara achasse ruim, ele teria que enfrentar todos nós. E ninguém era besta de encarar uma tropa daquela.

- Ah, tá. E agora? O que você vai fazer com isso tudo aí, dentro da sacola?

- Vamos dividir. Eu vou ficar com essas aqui... Você sabe quem quer comprar um celular ou uma câmera? Esse celular aqui, que deve custar uns quatrocentos ou quinhentos reais, eu estou vendendo por uma onça.

- Eu não conheço ninguém que está interessado em comprar um celular. Mas pode deixar. Se eu ficar sabendo, vou te avisar, tá?

- Pode crê. Pô, parceiro, você sumiu naquela hora. Pra onde você foi?

- Pois é, guerreiro. Eu me distraí e acabei me perdendo de vocês. Como não consegui encontrar vocês de novo, fui para a rodô e peguei um ônibus de volta.

- Sorte sua, truta! Quando fui para a rodô, não tinha mais ônibus. Eu e a galera tivemos que ficar por lá mesmo até amanhecer.

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