Blog do Paraíso: abril 2009

sábado, 25 de abril de 2009

Capítulo III


A badalada rua quase nunca ficava em silêncio, sempre tinha um vizinho que ouvia sua música preferida no último volume. Parecia até que cada um queria mostrar seu estilo musical. Gospel, rap, rock, axé, forró, samba, funk, enfim, cada morador tinha sua preferência.

Evangélico, a música preferida de Hamixiaire não era gospel. A música preferia de Hamixiaire era a que ele tocava com seu pandeiro ou com sua flauta. Com o pandeiro, Hamixiaire demonstrava que estava animado, feliz. Com a flauta, ele dava a entender que estava apaixonado.

O som melancólico da flauta de Hamixiaire ecoava em meio ao raro silêncio da rua. Seus vizinhos, de dentro dos barracos, ou nas calçadas das esquinas, ouviam com atenção aquele som ora agudo, ora meio rouco e meio grave. Por causa da flauta, Hamixiaire recebera até apelido. Os moradores daquela rua chamavam-no de Flautinha.

Mas o som da flauta de Hamixiaire não encantava somente os adultos que moravam lá. O som de Flautinha também chamava a atenção das menininhas.

Gabriela, como toda criança de oito anos, por exemplo, era uma das menininhas que se aproximava de Haminiaire para vê-lo tocar a flauta.

O cabelo de Gabriela era longo, batia na cintura, e tinha a cor de amarelo queimado. Ela era magrinha. Seu rosto, bonitinho. Nariz afilado, queixo fino. A pele morena. Enfim, Gabriela era mestiça. Filha de pai branco, com mãe negra.

Os pais de Gabriela, seu João e dona Paula, diziam sempre para ela não sair da frente de casa, pois eles sabiam que o perigo morava perto. A casa de Hamixiaire ficava praticamente ao lado da casa da pequena Gabi. E, toda vez que ela ouvia o som da flauta, corria para perto de quem a tocava.

Hamixiaire ficava atento para ver se não tinha nenhum adulto por perto, principalmente, os pais de Gabi.

- Hamixiaire, toca aquela música que você estava tocando naquele dia – pediu certa vez Gabriela.

Hamixiaire, com olhar lerdo, e tentando fazer uma voz infantil, como a de Gabriela, perguntou:

- Qual, Gabizinha?

- Aquela que começa assim – respondeu a inocente – fi, fi, fi, fu, fu, fi, fiiii.

Hamixiaire não tinha ideia da música que começava com “fi, fi, fi, fu, fu, fi, fiiii”, mesmo assim, disse que se lembrava e começou a tocar uma música qualquer com o som parecido.

- Não é essa não, Hamixiaire – protestou a criança.

- Você já viu o meu novo animal de estimação? – perguntou Hamixiaire notando que não havia nenhum adulto por perto.

Gabriela sabia que Hamixiaire possuía coruja, gavião, lagarto e até cobra, pois ele, volta e meia, aparecia com um desses bichos na rua. No entanto, ela não sabia que ele tinha um novo animal de estimação.

- Cadê ele? Eu já vi? – perguntou.

- Você ainda não viu, Gabizinha, porque eu ainda não te mostrei. Você quer ver ele? – Hamixiaire se encurvou balançando a cabeça para cima e para baixo – Quer, Gabizinha? Quer?

- Eu quero. Onde ele está?

- Ele está aqui dentro de casa.

Gabriela nunca tinha entrado no barraco de Hamixiaire e por isso teve receio.

- Eu – disse apontando para si – entrar aí?

- É.

- Não sei. Acho que meus pais não deixam. Vou lá pedir eles.

- Não precisa pedir seus pais porque na minha casa você vai estar segura. Nada de mau vai te acontecer. E seus pais sabem disso porque eles me conhecem.

- E se minha mãe vier me procurar e não me ver aqui em frente de casa. Acho que ela vai brigar.

- Vai nada, Gabizinha. Se ela for brigar com você, pode me chamar que eu vou dizer pra ela que você estava na minha casa vendo o meu novo animal de estimação. Ou você não quer ver?

- Sim eu quero.

- Então vamos. Eu aproveito e toco aquela música que você queria ouvir.

- Tá!

A falta de malícia de Gabriela permitiu que ela fosse convencida pelos argumentos de Hamixiaire. Ela, portanto, entrou com ele dentro do barraco. Era um lugar frio. Parecia que ninguém habitava lá. Parecia que ninguém limpava o chão, as janelas e os móveis. O barraco estava escuro porque as portas e as janelas sempre ficavam fechadas. Mas, para não deixar Gabi com medo, assim que eles entraram, Hamixiaire acendeu a luz da sala.

- Cadê? – perguntou Gabi.

- Vem aqui que eu vou te mostrar.

Hamixiaire levou Gabi para seu quarto. Com um cheiro de mofo, o quarto de Hamixiaire estava uma bagunça. Lá dentro tinha duas gaiolas. Uma para a coruja e a outra para o gavião. A coruja dormia sossegada, mas o gavião parecia triste. Tristeza que se afastou por um instante com a presença da pequena Gabi.

Enquanto Gabi olhava para o gavião, Hamixiaire fingia que procurava seu novo animal de estimação. Ele olhava em baixo da cama. Dentro do guardarroupas, mas não encontrava. Foi neste momento que ele decidiu explicar para Gabriela que seu novo bicho tinha sumido. Hamixiaire se aproximou da criança. Começou a passar a mão na cabeça da pequena, alisando os cabelos dela.

- Gabizinha, não estou conseguindo encontrar o meu novo animal de estimação. Eu acho que ele subiu em você.

- Em mim?! – perguntou assustada. Aí, tira ele daqui!

- Calma, filha – disse Hamixiaire tentando acalmar Gabriela –. Esse animal não faz mal. Ele não morde.

- A não! Mesmo assim eu não quero ele em mim – ela falou quase chorando.

- Tá bom – concordou Hamixiaire –. Eu vou tirar ele de você, mas você vai ter que ficar bem quietinha, tá?

- Tá!

- Deixa eu ver se ele está aqui na sua blusa – Hamixiaire falou enquanto deslizava sua mão pelas costas da menina. Depois, passou a mão no peito e na barriga da criança.

- Ele não está aqui.

- Tá aonde então?

- Deixa eu ver se ele está na sua saia – Hamixiaire se agachou e começou a deslizar sua enorme mão pelas pequenas e magras pernas de Gabriela...

- Gabriela! Ô Gabriela!! Cadê você, minha filha!!

- Eita, é a minha mãe! Tira logo esse bicho daí.

- Espera. Não é tão simples assim. Você vai ter que esperar um pouco.

- Gabi!! – gritou a mãe da criança com voz não muito amigável.

Percebendo que sua mãe já estava perdendo a paciência, Garbriela ficou com medo. Resolveu não esperar e saiu correndo. Hamixiaire não pode segurar a menina porque ela saiu de repente e justamente quando ele estava distraído, pensando em como convencê-la a ficar mais tempo em sua casa.

A mãe de Gabriela ao ver de onde a filha saiu ficou muito preocupada, pois sabia da fama de pedófilo que Hamixiaire tinha.

- Mas menina, o que é que você está fazendo aí? Eu já te falei mil vezes que não era para sair da frente de casa! Venha cá.

A dona Paula pegou sua chinela, segurou a filha com a outra mão e começou a dar chineladas na pequena.

- Isso aqui é pra você aprender a não me desobedecer mais – avisou dona Paula depois de três chineladas –. Onde já se viu, menina, você na casa daquele vagabundo? – Paula deu mais três chineladas.

- Ai, mãe! – era a única coisa que Gabriela dizia enquanto chorava.

- Você vai querer voltar de novo para casa daquele sem vergonha, Gabriela? Vai?

- Não mãe. Eu juro que não mãe.

Depois de ouvir a promessa da filha, dona Paula, não satisfeita, deu mais três chineladas na pequena e a levou para casa.

- A partir de hoje você vai ficar de castigo. Não vai sair mais de casa.

Por uma brecha da janela, Hamixiaire acompanhou a surra que dona Paula deu em Gabriela. Ele, no entanto, não teve pena da pequena criança, mas ficou muito desapontado por não ter conseguido abusar dela. Por causa da tara por meninas como Gabriela, Haminiaire recebeu um novo apelido na rua. Aliás, em todas as periferias, quem abusava sexualmente de crianças era chamado de “Jack”. E Hamixiaire era o Jack daquela tão badalada rua.

No final da tarde, ao chegar do serviço, seu João ouve de sua mulher que Gabriela estava dentro da casa de Hamixiaire.

- O que? Por que você deixou ela ir para lá?

- Eu não deixei ela ir pra lá. Ela que foi sozinha, sem minha permissão.

- Mesmo assim. Você tem que tomar conta de nossa filha. Ela é só uma criança. Ainda não tem juízo.

- Mas, João, o tanto de coisa que eu tenho que fazer aqui dentro de casa... A Gabriela tem que me obedecer.

- Eu não quero saber.

Bigodudo, João era um homem de pavio curto. Por trabalhar durante muitos anos como pedreiro, o pai de Gabriela era forte, parecia que frequentava academia. Além dos músculos, João era alto, o que dava medo. Era por isso que ninguém daquela rua o encarava.

Ao saber da história contada por dona Paula, João ficou muito furioso e preocupado.

- Onde está Gabriela? Gabriela, venha cá!!

Ao ouvir a voz furiosa do pai, e depois de lembrar da surra da mãe, a pequena Gabi veio aos prantos.

- Não é para bater nela porque eu já bati – avisou Paula.

- Por que você está chorando? Eu ainda nem trisquei em você.

- Não é nada não, pai – respondeu amedrontada.

- O que você foi fazer na casa do Hamixiaire?

- Nada.

- Nada?! Conta essa história direito senão você vai levar outra surra e você sabe que minha surra é bem pior.

- Tá bom, pai – disse soluçando –. O Hamixiaire me chamou para ver o novo animal de estimação dele.

- E por que você não avisou para sua mãe?

- Porque o Hamixiaire disse que não precisava.

- Mas olha!! – João olhou para dona Paula –. Ele te mostrou o animal? Que bicho era?

- Eu não vi porque o bicho tinha subido em mim.

- Subido em você?

- É. O Hamixiaire disse que ele tinha subido em mim.

- E ele fez alguma coisa para tirar o bicho de você?

- Sim.

- O que?

- Ele passou a mão na minha blusa, atrás e na frente. Depois começou a procurar na minha saia...

Sem querer ouvir mais o que a filha dizia, João se levantou e caminhou em direção à porta da sua casa.

- Aonde você vai, João?

O pai de Gabriela não respondeu e continuou caminhando. Saiu de sua casa e foi procurar Hamixiaire. Não foi muito difícil encontrá-lo, pois ele estava na esquina acompanhado por Tião, Marciano e Jacinto. Hamixiaire ao ver João vindo em sua direção já pode imaginar o que ele queria, por isso, ficou em alerta e se escondeu atrás dos colegas. Sem querer enfrentar todos, João ameaçou.

- Escuta aqui, seu safado, da próxima vez que você triscar em minha filha eu te mato.

- Oxê! Você tá doido, João? – perguntou Tião.

- Doido nada. É esse safado aí que tava passando a mão em minha filha. Eu nem sei se ele fez mais coisas, mas, se eu ficar sabendo, não vou esperar uma próxima vez para quebrar a cara dele.

- Vem quebrar se você for homem – desafiou Hamixiaire, ao perceber que João ficou um pouco intimidado com a presença de Tião, o traficante da quadra.

- Não me provoca não, seu moleque! Você fala isso só porque você está acompanhado dos seus colegas.

- Não dá nada, João. Seu negócio é entre você e o Hamixiaire – disse Tião querendo ver o mal.

- Que é isso parceiro? – perguntou Hamixiaire.

- Ué, Hamixiaire, se você não se garante, para de provocar o bicho aí.

- Claro que eu me garanto, mas nos somos chegados e você tem que me ajudar a quebrar esse comédia aí.

- Que quebrar o bicho aí, moço! Você tá errado. Você sabe que na cadeia Jackão passa é mal.

- É isso aí. Ele tem sorte que eu não vou na polícia dar queixa dele – disse João –. Eu só tô avisando que da próxima vez que ele triscar na minha filha eu vou quebrar a cara dele e ainda vou chamar a polícia.

- Pode deixar isso quieto, seu João – disse o traficante –. Ele não vai mais tocar na sua filha porque, se ele fizer isso, quem vai resolver com ele vai ser eu. Você sabe que esse negócio de jackagem é mó tiração.

Enquanto Tião “passava o pano” no “grave” de Hamixiaire, Marciano e Jacinto apenas observavam calados. Mas ambos estavam de acordo com Tião. Eles também eram contra o abuso sexual de crianças.

Após o acordo estabelecido por Tião, João foi para sua casa. E o traficante disse para Hamixiaire.

- Ó bicho eu já falei para você parar com isso. Você teve sorte que eu tava aqui porque senão esse cara ia te pegar e ia te quebrar todinho.

- Que nada! Eu sou é faixa preta.

- Então porque você se escondeu atrás da gente? – perguntou Marciano.

- É mesmo – concordou Jacinto.

- Deixa ele. Eu já avisei. Dá próxima vez eu não tô nem aí – falou o Tião.

- Que isso gente? Eu não fiz nada com aquela menina.

- É, mas essa não é a primeira vez não – disse Jacinto.

- Pior que é mesmo – concordou Marciano –. Você já tem a fama na rua de Jack e eu já fiquei sabendo de várias histórias sobre você...

Todos ficaram calados. No momento, como modelos que desfilam numa passarela, Bruna e Camila caminhavam pela rua e se aproximaram deles. Sem piscar, Marciano era o que mais prestava atenção. Bruna tinha o cabelo liso, comprido e castanho claro. Ela usava um vestidinho bem curto e decotado. Rosto angelical e pele morena clara. Já Camila tinha o cabelo negro e encaracolado. Seu rosto era redondo e o nariz achatado. Olhos negros e pele também. Ela usava uma blusinha decotada e o shortinho bem curto. As pernas de ambas eram roliças e chamavam atenção. Ambas estavam maquiadas e com brilho nos lábios.

- Oi Tião – cumprimentaram as duas.

- E aê? Como é que é? Depois eu quero ver aquele lado com vocês duas pra depois nós pá, tá? – fez um gesto com as duas mãos, uma batendo na outra, como se a mão direita fosse uma faca e a esquerda uma taboa.

- Mais tarde a gente passa lá na sua casa.

Elas continuaram o caminho e se foram. Marciano, Jacinto e Hamixiaire estavam cansados de ver as belas jovens passarem pela rua, afinal, elas moravam lá perto. No entanto, eles não conversavam com elas. Somente Tião as conhecia.

- Ó í – Jacinto apontou na direção que Bruna e Camila se foram –. Por que você não se interessa por esse tipo de mulher, Hamixiaire?

- Essas barangas são muito metidas. Nem fala com a gente.

- Não fala com você – disse Tião.

- Qual daquelas você tá pegando, Tião? – perguntou curioso Marciano.

- As duas.

- As duas?!

Por dentro, Marciano se corroeu de inveja, pois, enquanto Tião ficava com duas mulheres, ele não tinha nenhuma.

- Oxê, você não viu aí não eu cobrando um esquema? Alí, parceiro, é só você arrumar 20 conto de pó e uma caixa de cerveja de latinha.

- Essas porras é tudo banda – protestou Marciano, mas no fundo, no fundo, ele queria ficar com uma delas.

Novamente eles ficaram em silêncio. Além de bater papo, uma das distrações dos colegas de esquina era observar as mulheres que passavam pela rua. E dessa vez quem passava por lá era a Benedita. Ela não era como Bruna e nem como Camila na aparência. Não andava maquiada. Com shortinho curto, saia curta ou blusinha decotada. Benedita era uma crentinha. Vestia-se comedidamente. Seu cabelo era encaracolado e negro. Sua pele morena. Benedita era magra, ainda assim, despertava o interesse dos homens da rua.

- Oi, meninos.

- Oi, Benedita – respondeu Marciano, enquanto os outros apenas balançaram afirmativamente a cabeça –. Você vai hoje na Panela de Barro?

- Eu vou e você?

- Eu tô pensando em ir.

- Aparece lá. Tchau.

Após Benedita se afastar, Marciano comentou.

- Tá vendo aí? Prefiro essa dona do que aquelas outras.

- Que nada, Marciano – disse Tião. Essa dona é mó santa do pau oco. Quem aqui da rua não pegou?

- Só o Marciano – apontou Jacinto –. Há, há, há!

domingo, 19 de abril de 2009

O Aniversário da Ilha Maravilha


Capítulo II

Pousados nos fios que levam energia para as casas, os pardais cantavam e anunciavam o início de mais um milagroso dia. Um bom dia, conforme os raios do sol apareciam e revelavam o belo azul do céu. Os raios revelavam ainda as esquinas da rua e os cacos dos barracos.

Como de costume, Marciano Justino acordou por volta das 8 horas, lavou o rosto e bebeu o café feito por sua mãe, chamada de Clementina Justino. A comunicação entre Marciano e Clementina era mais por meio de gestos do que por palavras. De estatura baixa e um pouco redonda, a mãe de Justino era uma figura gozada, quase nunca saia de seu barraco. Quase nunca aparecia na badalada rua daquela pequena e isolada cidade. Muitos achavam até que Marciano não tinha mãe. O principal passatempo de Clementina era cuidar de suas galinhas. Eram doze e um galo.

Diferente de sua mãe, Marciano quase nunca ficava em casa. Como um serviço, ele tinha que está presente, diariamente, na esquina de sua casa. Também como no trabalho, e em qualquer lugar, ele fazia amizades com os seus vizinhos que, como ele, pareciam usar um uniforme. Chinelo, bermudão colorido e camiseta estampada com uma marca famosa. Uns usavam ainda um boné. Outros, apenas o chinelo e o bermudão.

Naquela manhã, sentado na calçada, tomando sol, Marciano foi o primeiro a chegar à esquina. Logo depois veio Hamixiaire. Em seguida Jacinto. Por último, Tião.

- Eu vi na TV que hoje vai ser o aniversário da Ilha Maravilha – informou Hamixiaire.

- Eu também vi – falou Marciano. Vai ter show de graça com uma ex-atriz pornô e uma cantora de Bahia.

- Já tem um tempão que eu não vou para a Ilha – lembrou Jacinto. Se brincar, têm é anos.

- Ah! Mas agora vai ser de boa porque o ônibus só vai cobrar um real – informou Hamixiaire.

Os companheiros de esquinas perceberam que havia todas as condições para, naquele belo dia, visitar a Ilha Maravilha. Cercada por cidades como aquela da famosa rua, Ilha Maravilha era a capital do país. O nome já dizia tudo sobre a capital. Ilha Maravilha. Grandes e belas construções. Urbanizada e limpa. Índice de qualidade de vida muito alto. Tratava-se de um pedaço do primeiro mundo inserido no terceiro mundo. Era como um oásis em meio ao deserto.

Pessoas como Marciano, Jacinto, Tião ou Hamixiaire não eram bem-vindas na Ilha; a não ser para prestar serviço de mão de obra barata. Só que nem isso eles estavam conseguindo mais. Logo, como pecadores expulsos do Éden, eles não podiam desfrutar as maravilhas da Ilha. O motivo não foi comer o fruto proibido, mas, sim, nascer pobre. O que impede a entrada na Ilha não é uma espada de fogo, apenas o alto preço da passagem de ônibus e, para outros lugares, os acessos somente para quem tem carro próprio.

No entanto, como um milagre, o governo anunciava, incansavelmente, nos meios de comunicação, que pessoas como Marciano, Jacinto, Tião ou Hamixiaire podiam adentrar no Éden.

- E aí, gente! Vamos fazer uma intera para levar um vinho? – sugeriu Marciano.

- Ué, faz aí, com os bichos – disse Jacinto.

- Eu tenho aqui só dois reais – falou Hamixiaire. O dinheiro certinho para a passagem.

- E você Tião?

- Ts! Sabe como é. A polícia recentemente prendeu um carregamento de drogas e, por isso, fiquei um tempo parado sem fazer nenhum dinheiro. Vou poder dar... Deixa eu ver aqui... Dez, vinte, cinquenta... Vou poder dar um real e cinquenta centavos.

- Pô, só isso. Vocês são foda! – protestou Marciano. Eu também não trabalho, mas tenho dinheiro porque, de vez enquanto, faço um bico numa obra qualquer. Mesmo assim, não vou comprar o tubão de vinho sozinho.

- Se você der mais um e cinquenta, assim como eu, dá para a gente fazer um quite. É bem gostoso com refrigerante de limão.

Os companheiros de esquina acordaram que levariam um quite para beber. Eles combinaram a hora que deveriam subir para a parada de ônibus, mas antes deveriam comprar duas garrafas de refrigerante de limão, cada uma por um real, e mais duas garrafinhas de cachaça de alambique por cinquenta centavos, cada. Eles beberam um pouco do refrigerante de cada garrafa para ter espaço para misturar a cachaça. Após os líquidos misturados, colocaram as garrafas de dois litros, cada, numa sacola e subiram para a parada de ônibus.

Assim como os companheiros de esquina, muitos outros jovens daquela cidade decidiram ir ao aniversário da Ilha Maravilha. A parada de ônibus, portanto, estava lotada. Logo, eles entraram em clima de festa. E já começaram a beber o líquido das garrafas.

Todos os ônibus com destino ao local da festa passavam completamente lotados. Foi difícil pegar um. Só depois do terceiro que passou lotado que eles conseguiram embarcar.

Durante a viagem, os companheiros de esquina secaram uma garrafa de quite. Eles chegaram à festa já bêbados. Não satisfeito com o efeito da cachaça, Tião sentiu vontade de dar uns tapinhas num cigarro de maconha. Instintivamente, Tião viu um sujeito e o identificou como maconheiro. Depois de uma conversa bem cordial, ele conseguiu, de graça, uma pequena quantidade da droga, suficiente para um fininho.

Havia muita gente no local da festa. Eram quase um milhão de pessoas. Muitas estavam bebendo e fumando. O clima estava tão liberal que Tião não teve receio de acender o cigarro de maconha no meio das outras pessoas. Logo a fumaça do fininho de Tião se juntou à fumaça de outros cigarros e a atmosfera ficou com o cheiro, ou catinga, de maconha. Dos companheiros de esquina, o cigarro só não passou pela mão de Marciano.

A festa estava muito animada. Tinha muita mulher bonita, o que deixou Marciano contente. Inclusive, em sua frente apareceu uma bela morena. Cabelo feito escovinha. Calça bem colada. Blusinha decotada e mostrando a barriga. Foram essas as características da morena que não deixaram Marciano prestar atenção na festa. Justino teve ímpeto de ir conversar com a morena, mas, como das outras vezes, não teve coragem de ir. Quando se trata de mulher, Marciano se torna uma pessoa muito insegura.

A morena, que estava acompanhada de outras belas mulheres, sentiu vontade de mudar de lugar e saiu de perto de Marciano. Sem vê mais a linda morena, Marciano voltou a prestar atenção na festa. Logo ele percebeu que não estava mais acompanhado por Jacinto, Tião e Hamixiaire.

Marciano procurou seus companheiros durante um bom tempo. A festa chegou ao fim e ele não encontrou ninguém. Marciano decidiu ir para a rodoviária pegar o ônibus de volta para casa, antes que eles parassem de rodar. Existe uma lei que determina às empresas manter ônibus durante toda a noite, no entanto, não é bem assim que as coisas funcionam.

Ao chegar ao ponto de ônibus, Marciano vê uma multidão se apertando para entrar no penúltimo ônibus para sua cidade. Era tanta gente que virou bagunça. Não havia nem fila. Foi preciso a polícia intervir para organizar a situação. Com socos, chutes e cacetadas a polícia conseguiu fazer com que quem estava dentro do ônibus se apertasse mais ainda para entrar mais gente. O ônibus ficou bastante lotado. Ainda assim, havia gente querendo entrar. Só que foi convencida pelos policiais a esperar o próximo ônibus.

Marciano teve medo da agressão dos policiais. Quase desistiu de pegar o próximo ônibus. Mas se convenceu que era melhor dormir em casa e, não, na rodoviária da Ilha Maravilha. Apesar de toda limpeza e organização da Ilha, sua rodoviária era imunda e desorganizada. Por todos os lados havia pedintes. Menores consumindo drogas e se prostituindo. Não era seguro passar a noite num local desses.

Marciano, portanto, foi para a fila e, para sua felicidade, entrou no ônibus sem levar nenhuma pancada dos policiais. Como o penúltimo, o ônibus saiu totalmente lotado. Se Marciano levantasse o pé, não encontraria lugar para colocá-lo novamente no chão.

Durante a viajem, a atmosfera do ônibus ficou igual a da festa: repleta de fumaça de maconha. Era do fundo do ônibus que a fumaça vinha. Era lá que alguns sujeitos faziam uma bagunça danada. Mas o pior ainda estava por acontecer. Depois de entrar na cidade, o ônibus parou no primeiro ponto. Como demônios, quem desceu começou a alvejar o veículo com pedras. Quando atingia de maneira certeira a janela, a pedra transformava o vidro em farinha. Os passageiros entraram em pânico. As mulheres gritavam e pediam para o motorista sair daquele ponto de ônibus. O motorista obedeceu. Enquanto o ônibus andava, as pedras continuavam batendo no veículo. Marciano observava atentamente para evitar que uma pedra o atingisse.

Chegando no próximo ponto, o ônibus, a pedido de um passageiro, parou novamente. E vieram mais pedras. Depois de parar umas quatros vezes, o motorista percebeu que o ônibus estava sendo perseguido. Ele decidiu não parar mais e mudou a trajetória da linha. Seguiu para a delegacia da pequena cidade pobre e violenta.

Marciano tremia de medo. Achou que os vândalos iriam seguir o ônibus até a delegacia, mas não foi isso que aconteceu.

Muitos passageiros ficaram feridos pelos cacos dos vidros e pelas pedras. Marciano teve sorte porque estava em pé, no corredor do ônibus e, por isso, teve mais facilidade de se esquivar das pedras.

Marciano decidiu não dar queixa. Assim que o ônibus parou na delegacia, ele se dirigiu, a pé, para sua casa, que não ficava muito longe. Deitado em sua cama, Marciano agradeceu a Deus por ter chegado são e salvo. Mas... O que teria acontecido com seus companheiros de esquina, se perguntava Marciano.

No dia seguinte, Marciano encontrou Tião com uma sacola cheia de celular e câmera fotográfica.

- Onde você conseguiu esses celulares e essas câmeras, Tião?

- Naquele momento que a gente se perdeu, eu, o Jacinto e o Hamixiaire, nos juntamos com um grupo de chegados meus e começamos a roubar esses celulares e essas câmeras.

- Vocês são doidos mesmo. E como vocês fizeram isso?

- Como tinha muita gente na nossa galera, foi muito fácil – explicou Tião. Escolhíamos a vítima e ficávamos atrás dela. Assim que ela pegava a câmera ou o celular do bolso para tirar fotos, um de nós metia a mão e tomava. Se o cara achasse ruim, ele teria que enfrentar todos nós. E ninguém era besta de encarar uma tropa daquela.

- Ah, tá. E agora? O que você vai fazer com isso tudo aí, dentro da sacola?

- Vamos dividir. Eu vou ficar com essas aqui... Você sabe quem quer comprar um celular ou uma câmera? Esse celular aqui, que deve custar uns quatrocentos ou quinhentos reais, eu estou vendendo por uma onça.

- Eu não conheço ninguém que está interessado em comprar um celular. Mas pode deixar. Se eu ficar sabendo, vou te avisar, tá?

- Pode crê. Pô, parceiro, você sumiu naquela hora. Pra onde você foi?

- Pois é, guerreiro. Eu me distraí e acabei me perdendo de vocês. Como não consegui encontrar vocês de novo, fui para a rodô e peguei um ônibus de volta.

- Sorte sua, truta! Quando fui para a rodô, não tinha mais ônibus. Eu e a galera tivemos que ficar por lá mesmo até amanhecer.

sábado, 11 de abril de 2009

Rua de Periferia

Capítulo I

Era uma vez uma rua muito badalada e que ficava numa cidade bem pobre de um país emergente – eufemismo de subdesenvolvido. A rua era badalada porque sempre estava movimentada, de cima a baixo. Não era uma avenida comercial. Apesar de extensa – tinha um quilômetro –, a rua era residencial. Ela possuía um cruzamento e muitas esquinas. O cruzamento ficava bem no centro da rua. Era como uma rosa dos ventos. Tinha o lado norte e o lado sul. O leste e o oeste. Enquanto no lado leste da rua havia 10 esquinas, o lado oeste não possuía uma sequer; tinha somente a entrada do cruzamento. As esquinas, porém, ficavam bem distribuídas. Na direção do norte, havia cinco e, para o sul, outras cincos.

A maioria dos moradores da rua não sabia o que era uma rosa dos ventos, por isso, as coisas eram muito simples. O cruzamento dividia a via em duas. Era o lado de cima e o lado de baixo. Quem morava na parte de cima não se entendia muito bem com quem morava na parte de baixo.

As esquinas de ambos os lados comumente ficavam repletas de jovens. Eles vinham de quadras diferentes e se misturavam com quem morava na rua.

Apesar de ser de uma cidade bem pobre, a rua era asfaltada e as casas possuíam calçadas, quase todas, sem lixeira. Logo, volta e meia, a via ficava cheia de lixo, que era recolhido uma vez ou outra pelos moradores. Eles não faziam mutirão para limpar a rua. Cada um, quando bem entendesse, resolvia varrer a frente de sua casa.

As calçadas eram feitas de concretos. Não existia nenhuma com grama. De todas as calçadas, somente duas possuíam árvores, que eram constantemente podadas porque senão elas poderiam se chocar com a fiação da rede elétrica.

As árvores não eram bem-vindas nas calçadas porque os moradores não queriam que elas fizessem sombra para os jovens das esquinas. Essa era a solução inútil para evitar que eles fumassem maconha na calçada deles.

Os bueiros estavam sempre entupidos pelo lixo. Quando chovia, a água formava enormes enxurradas. Só não acontecia inundação porque a rua era um pouco íngreme e não havia por perto nenhum rio.

As casas não possuíam estética nenhuma, somente funcionalidade. Eram feitas com o propósito de abrigo. Elas eram cercadas por muros que formavam pequenos caixotes. Um do lado do outro. Dentro de cada um, a casa, quero dizer, o barraco com, no máximo, cinco cômodos. As paredes, quando rebocadas, raramente pintadas.

De estatura média, pele negra, olho castanho escuro, cabelos encaracolados e nariz de coxinha, o jovem Marciano Justino era um dos moradores da rua. Seu barraco ficava na terceira esquina de cima para baixo. Aos 26 anos, ele ainda morava com os pais e mais dois irmãos.

Desempregado, Marciano passava o dia inteiro na esquina com outros jovens jogando conversa fora. Justino era um rapaz de bem. Nunca foi preso, nunca furtou ou roubou. Seu problema: ele gostava de encher a cara de vez em quando.

Seus colegas de esquina eram Jacinto, Tião e Zeca. Também morador da parte de cima da rua, Jacinto, aos 25 anos, não sabia o que era trabalhar de carteira assinada. Sua casa ficava do lado que não tinha esquinas, um pouco abaixo da moradia de Marciano. Jacinto raramente usava camisa. Cabeça sempre raspada, pele morena e tatuada, Jacinto era um pouco menor que Marciano.

Jacinto, atualmente, responde em liberdade por assalto à mão armada. Foi o único crime que cometeu na vida. Ele é viciado em maconha. Não há um dia que não fuma um cigarro. Sempre sustentado pela mãe, Jacinto nunca tinha dinheiro para bancar o vício. Para isso, ele conta com a camaradagem de Tião que sempre o convida para “dar um tapinha”.

Tião é um dos muitos jovens que saem de suas quadras para ficar lá naquela rua. Ele nunca foi preso por traficar drogas, mas por porte ilegal de armas. Por ser réu primário, também responde em liberdade. Filho único, Tião, 22 anos, mora somente com a mãe. Olhos castanhos e pele clara, Tião andava sempre com boné, ainda que seu cabelo fosse liso. Nariz afilado e de estatura mediana, ela nunca ficava sem namorada. Havia sempre duas ou três mulheres correndo atrás dele. Era o que deixava Marciano Justino inconformado. Justino nunca namorou na vida e não conseguia arrumar nenhuma mulher. Vendo a situação do amigo Tião, Marciano não entendia porque um cara de bem, como ele, era preterido por um traficante. Justino, portanto, sempre dizia “mulher é igual galinha: prefere comer merda em vez de comer milho”.

Um pouco abaixo do barraco de Marciano, mais precisamente na quinta esquina, morava Zeca. Ele andava sempre com um animal. Quando não era um mico, era uma cobra. Quando não era um lagarto, era um gavião. Aos 30 anos, Zeca morava só. Seu cabelo, liso e negro, era cortado de maneira social. Olhos castanhos e pele clara, as únicas tatuagens de Zeca eram duas pintinhas verdes no lado esquerdo do rosto.

Zeca tinha a fama de pedófilo, no entanto, ele se dizia religioso. Frequentava a Assembléia de Deus, inclusive, ele saiu dizendo para todos que, certa vez, Jesus o visitou. “Ele falou que era para eu mudar o meu nome para Hamixiaire”. O mais estranho era que Zeca, quero dizer, Hamixiaire só lembrava dessa história depois de usar drogas pesadas.

Essas quatro figuras se reuniam diariamente na esquina para conversar. Os assuntos variavam. Tião tinha a mania de falar sobre suas aventuras no mundo do crime. Jacinto contava histórias de outras quadras. Hamixiaire falava das criancinhas que gostaria de pegar. E Marciano apenas escutava. Ele era muito caseiro e não tinha muita história para contar. Aliás, as histórias que ele contava eram todas sobre as conversas que ouvia ou de fatos que ele via acontecer lá na rua, quando ficava na esquina sem o que fazer.

Certa vez, quando Zeca não estava presente, Marciano contou uma história que deixou Tião e Jacinto bastante admirados. Segundo Marciano, uma idosa de 90 anos, que caminhava bêbada pela rua e trazia consigo uns dois quilos de carne moída, tropeçou e caiu. Hamixiaire se solidarizou e correu para ajudar a senhora a se levantar.

- Cuidado, senhora! Assim você pode se machucar – disse Zeca, segundo Marciano – Olha só como ficou a sacola da sua carne moída. Sujou todinha. E a senhora então? Está precisando de um banho. Venha até minha casa que eu vou te ajudar.

Sem recusar o convite de Hamixiaire, a senhora foi com ele. Marciano, que olhava curioso da esquina de sua casa aquela cena, quis aguardar para ver quanto tempo a idosa passaria na casa de Zeca.

- Eles ficaram um tempão lá dentro – relatou Marciano. Depois, eu vi a senhora sair da casa do Hamixiaire, sem a carne moída e com os cabelos molhados, sinal de que ele deu um banho nela.

- Ele deve ter comido elas – sugeriu Tião.

- Eu não duvido nada – concordou Jacinto. Do jeito que o Zeca é tarado...

Para surpresa de Tião e de Jacinto, Marciano disse que depois foi conversar com Hamixiaire sobre o que ele tinha visto e, sem cerimônia nenhuma, o evangélico disse que o que aconteceu.

- Eu levei a velhinha para casa. Lá dei um trato nela, mas, antes, eu tive de banhá-la, pois ela estava fedendo muito. Em seguida, me deu uma fome. Lembrei da carne moída que ela trazia. Fritei e comi com arroz.

- Caramba... Esse Hamixiaire é muito doido mesmo, né bicho? – se espantou Tião.

- Há! Há! Há! – caiu na gargalhada Jacinto – Eu até imagino a cena.

Com pequenos intervalos para alimentação, a conversa na esquina durava, muitas vezes, o dia todo, passando para a noite.

domingo, 5 de abril de 2009

Para mau entendedor, meia palavra não basta

O ditado popular diz que, para bom entendedor, meia palavra basta. Às vezes, tenho uma leve desconfiança de que esse ditado não vale para os meus colegas jornalistas – não todos, mas a maioria.



Semana passada, por exemplo, o mal entendido foi com a declaração que o presidente americano Barack Obama fez, ao se encontrar, em Londres, com o presidente Lula na reunião do grupo das maiores economias do mundo, o G20. De maneira bem informal e descontraída, o presidente Obama disse para Lula “esse é o cara”. “O político mais popular do mundo”. Em seguida, Obama explicou: “Isso porque ele é boa pinta”.

Pela ocasião, pelos gestos e pelos termos, é óbvio que Barack estava de brincadeira. Brincadeira irônica, diga-se. Aqui no Brasil, por exemplo, quando uma pessoa chama a outra de “o cara”, dependendo da situação, ela pode não está fazendo um elogio. Ainda assim, o que mostra mesmo que o presidente americano não estava falando sério é a explicação “isso porque ele é boa pinta”. Como assim? Por que a aparência do presidente Lula o torna “o político mais popular do mundo”?

Se Barack Obama estivesse falando sério, com certeza, ele diria “ele é popular por causa de sua importante atuação política no mundo”. Ou então, “ele é popular por causa do seu governo que transformou o Brasil”. Ou ainda, “ele é popular porque é presidente de um país que está dando exemplo ao mundo de como se combate a crise”. Eu mesmo se fosse presidente gostaria de ouvir alguma coisa parecida com isso. E tem mais. Se realmente o que Obama falou fosse sério, ele teria feito a declaração durante um discurso oficial.

Mas aonde Paraíso quer chegar com toda essa explicação? Antes de responder a sua pergunta, estimado leitor, gostaria de lhe fazer outra. Você viu as manchetes de algumas notícias sobre a declaração do presidente americano? Eu li muitas que diziam mais ou menos assim “Lula é o político mais popular do mundo, diz Obama”. Quer dizer, o jornalista que escreveu isso levou mesmo a sério a declaração do presidente americano. Em minha opinião, devido às razões já apresentadas, o que Obama falou não deveria nem sequer ser notícia – há tanta coisa mais importante... Mas, como você mesmo viu, foi. Não consigo entender porquê.

Outra frase que também causou confusão foi a que o Lula disse antes de participar do G20, só que dessa vez aqui mesmo, no Brasil. Ele disse que a culpa da crise do sistema financeiro internacional é de gente branca, de olho azul, que antes dizia saber tudo e hoje demonstra não saber nada.

As notícias que saíram sobre a declaração afirmavam que Lula colocou questão racial na crise, dando até a entender que o presidente fora racista. Pelas matérias – não todas, é bom destacar – parecia que Lula quis dizer que foi a cor da pele branca e do olho azul que causou a crise, inclusive, em Londres, durante uma coletiva, uma jornalista chegou a pedir perdão ao presidente brasileiros por ser branca e ter olho azul. Olha só que confusão.

Gente. O Lula, ao fazer a declaração, apenas citou as características da maioria dos banqueiros. A intenção do Lula era mostrar que a crise foi causada por gente rica e, não, por gente pobre – os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) provam que os brancos são mais ricos que os negros. O presidente, coitado, só queria usar a retórica. Ele não queria, leitor que é branco, dizer que você é o responsável pela crise; que sua pele é a causadora da crise.

A declaração citada e comentada acima não é exceção. Várias outras frases do Lula já causaram polêmica e parece que o presidente ainda não se tocou que, para não ser mal interpretado, não deve dizer meia palavra, pois quem escreve sobre o que ele diz não é bom entendedor.

45 anos depois do golpe militar


A semana que passou tinha um dia bastante marcante para a história brasileira. É uma data de um aniversário que não traz felicidades, apenas lembranças, quase todas ruins. Não vivi naquela época, mas ainda hoje percebo as chagas deixadas pela ditadura militar que foi implantada no Brasil há 45 anos, mais precisamente, a partir de 31 de março de 1964.


O passado é construído no presente, logo, a história é artificial e, muitas vezes, beneficia uma pequena minoria que faz questão de omitir os fatos. Poucas pessoas, portanto, sabem que nossa estimada imprensa comemorou e apoiou o golpe militar. Poucos sabem que a Folha de S. Paulo, o “jornal [que se diz] mais influente do Brasil” emprestou seus carros para os militares transportarem os perseguidos da época.


Mas as coisas estão mudando com a internet. Há mais conteúdo a disposição das pessoas, por isso, faço questão de reproduzir aqui neste blog uma pesquisa sobre o que foi escrito pela imprensa a partir de 1º de abril – o estranho é que não há nenhuma referência à Folha de S. Paulo. A pesquisa foi publicada no site Carta Maior a pedido do blogueiro Emir Sader.


Veja abaixo o que escreveu a imprensa – aquela mesma que queria que o presidente Lula não fosse reeleito; que queria que Geraldo Alckimin (PSDB) fosse o presidente do Brasil; e que vai lutar para José Serra (PSDB) vencer Dilma Rousseff nas urnas:

“Ressurge a Democracia! Vive a Nação dias gloriosos. Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente das vinculações políticas simpáticas ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é de essencial: a democracia, a lei e a ordem.


Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas que, obedientes a seus chefes, demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições.


Como dizíamos, no editorial de anteontem, a legalidade não poderia ter a garantia da subversão, a ancora dos agitadores, o anteparo da desordem. Em nome da legalidade não seria legítimo admitir o assassínio das instituições, como se vinha fazendo, diante da Nação horrorizada ...”
(O Globo - Rio de Janeiro - 4 de Abril de 1964)

“Multidões em júbilo na Praça da Liberdade.
Ovacionados o governador do estado e chefes militares.
O ponto culminante das comemorações que ontem fizeram em Belo Horizonte, pela vitória do movimento pela paz e pela democracia foi, sem dúvida, a concentração popular defronte ao Palácio da Liberdade. Toda área localizada em frente à sede do governo mineiro foi totalmente tomada por enorme multidão, que ali acorreu para festejar o êxito da campanha deflagrada em Minas (...), formando uma das maiores massas humanas já vistas na cidade”

(O Estado de Minas - Belo Horizonte - 2 de abril de 1964)


“Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares que os protegeram de seus inimigos”


“Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais”
(O Globo - Rio de Janeiro - 2 de Abril de 1964)


“A população de Copacabana saiu às ruas, em verdadeiro carnaval, saudando as tropas do Exército. Chuvas de papéis picados caíam das janelas dos edifícios enquanto o povo dava vazão, nas ruas, ao seu contentamento”
(O Dia - Rio de Janeiro - 2 de Abril de 1964)

“Escorraçado, amordaçado e acovardado, deixou o poder como imperativo de legítima vontade popular o Sr João Belchior Marques Goulart, infame líder dos comuno-carreiristas-negocistas-sindicalistas. Um dos maiores gatunos que a história brasileira já registrou., o Sr João Goulart passa outra vez à história, agora também como um dos grandes covardes que ela já conheceu.”
(Tribuna da Imprensa - Rio de Janeiro - 2 de Abril de 1964)

“A paz alcançada. A vitória da causa democrática abre o País a perspectiva de trabalhar em paz e de vencer as graves dificuldades atuais. Não se pode, evidentemente, aceitar que essa perspectiva seja toldada, que os ânimos sejam postos a fogo. Assim o querem as Forças Armadas, assim o quer o povo brasileiro e assim deverá ser, pelo bem do Brasil”
(Editorial de O Povo - Fortaleza - 3 de Abril de 1964)


“Desde ontem se instalou no País a verdadeira legalidade ... Legalidade que o caudilho não quis preservar, violando-a no que de mais fundamental ela tem: a disciplina e a hierarquia militares. A legalidade está conosco e não com o caudilho aliado dos comunistas”
(Editorial do Jornal do Brasil - Rio de Janeiro - 1º de Abril de 1964)


“Milhares de pessoas compareceram, ontem, às solenidades que marcaram a posse do marechal Humberto Castelo Branco na Presidência da República ...O ato de posse do presidente Castelo Branco revestiu-se do mais alto sentido democrático, tal o apoio que obteve”
(Correio Braziliense - Brasília - 16 de Abril de 1964)


“Vibrante manifestação sem precedentes na história de Santa Maria para homenagear as Forças Armadas. Cinquenta mil pessoas na Marcha Cívica do Agradecimento”
(A Razão - Santa Maria - RS - 17 de Abril de 1964)

“Vive o País, há nove anos, um desses períodos férteis em programas e inspirações, graças à transposição do desejo para a vontade de crescer e afirmar-se. Negue-se tudo a essa revolução brasileira, menos que ela não moveu o País, com o apoio de todas as classes representativas, numa direção que já a destaca entre as nações com parcela maior de responsabilidades”.
(Editorial do Jornal do Brasil - Rio de Janeiro - 31 de Março de 1973)

“Golpe? É crime só punível pela deposição pura e simples do Presidente. Atentar contra a Federação é crime de lesa-pátria. Aqui acusamos o Sr. João Goulart de crime de lesa-pátria. Jogou-nos na luta fratricida, desordem social e corrupção generalizada”.
(Jornal do Brasil, edição de 01 de abril de 1964.)


"Participamos da Revolução de 1964 identificados com os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas, ameaçadas pela radicalização ideológica, greves, desordem social e corrupção generalizada".
Editorial do jornalista Roberto Marinho, publicado no jornal"
(O Globo", edição de 07 de outubro de 1984, sob o título: "Julgamento da Revolução").

Mais algumas manchetes:

31/03/64 – CORREIO DA MANHÃ – (Do editorial, BASTA!): "O Brasil já sofreu demasiado com o governo atual. Agora, basta!"


1°/04/64 – CORREIO DA MANHÃ – (Do editorial, FORA!): "Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: Saia!"


1o/04/64 – ESTADO DE SÃO PAULO – (SÃO PAULO REPETE 32) "Minas desta vez está conosco"... "dentro de poucas horas, essas forças não serão mais do que uma parcela mínima da incontável legião de brasileiros que anseiam por demonstrar definitivamente ao caudilho que a nação jamais se vergará às suas imposições."


02/04/64 – O GLOBO "Fugiu Goulart e a democracia está sendo restaurada"... "atendendo aos anseios nacionais de paz, tranqüilidade e progresso... as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-a do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal".

02/04/64 – CORREIO DA MANHÃ – "Lacerda anuncia volta do país à democracia."

05/04/64 – O GLOBO – "A Revolução democrática antecedeu em um mês a revolução comunista".

05/04/64 – O ESTADO DE MINAS – "Feliz a nação que pode contar com corporações militares de tão altos índices cívicos". "Os militares não deverão ensarilhar suas armas antes que emudeçam as vozes da corrupção e da traição à pátria."

06/04/64 – JORNAL DO BRASIL – "PONTES DE MIRANDA diz que Forças Armadas violaram a Constituição para poder salvá-la!"

09/04/64 – JORNAL DO BRASIL "Congresso concorda em aprovar Ato Institucional".

Pesquisa: Clarissa Pont