Blog do Paraíso: Capítulo III

sábado, 25 de abril de 2009

Capítulo III


A badalada rua quase nunca ficava em silêncio, sempre tinha um vizinho que ouvia sua música preferida no último volume. Parecia até que cada um queria mostrar seu estilo musical. Gospel, rap, rock, axé, forró, samba, funk, enfim, cada morador tinha sua preferência.

Evangélico, a música preferida de Hamixiaire não era gospel. A música preferia de Hamixiaire era a que ele tocava com seu pandeiro ou com sua flauta. Com o pandeiro, Hamixiaire demonstrava que estava animado, feliz. Com a flauta, ele dava a entender que estava apaixonado.

O som melancólico da flauta de Hamixiaire ecoava em meio ao raro silêncio da rua. Seus vizinhos, de dentro dos barracos, ou nas calçadas das esquinas, ouviam com atenção aquele som ora agudo, ora meio rouco e meio grave. Por causa da flauta, Hamixiaire recebera até apelido. Os moradores daquela rua chamavam-no de Flautinha.

Mas o som da flauta de Hamixiaire não encantava somente os adultos que moravam lá. O som de Flautinha também chamava a atenção das menininhas.

Gabriela, como toda criança de oito anos, por exemplo, era uma das menininhas que se aproximava de Haminiaire para vê-lo tocar a flauta.

O cabelo de Gabriela era longo, batia na cintura, e tinha a cor de amarelo queimado. Ela era magrinha. Seu rosto, bonitinho. Nariz afilado, queixo fino. A pele morena. Enfim, Gabriela era mestiça. Filha de pai branco, com mãe negra.

Os pais de Gabriela, seu João e dona Paula, diziam sempre para ela não sair da frente de casa, pois eles sabiam que o perigo morava perto. A casa de Hamixiaire ficava praticamente ao lado da casa da pequena Gabi. E, toda vez que ela ouvia o som da flauta, corria para perto de quem a tocava.

Hamixiaire ficava atento para ver se não tinha nenhum adulto por perto, principalmente, os pais de Gabi.

- Hamixiaire, toca aquela música que você estava tocando naquele dia – pediu certa vez Gabriela.

Hamixiaire, com olhar lerdo, e tentando fazer uma voz infantil, como a de Gabriela, perguntou:

- Qual, Gabizinha?

- Aquela que começa assim – respondeu a inocente – fi, fi, fi, fu, fu, fi, fiiii.

Hamixiaire não tinha ideia da música que começava com “fi, fi, fi, fu, fu, fi, fiiii”, mesmo assim, disse que se lembrava e começou a tocar uma música qualquer com o som parecido.

- Não é essa não, Hamixiaire – protestou a criança.

- Você já viu o meu novo animal de estimação? – perguntou Hamixiaire notando que não havia nenhum adulto por perto.

Gabriela sabia que Hamixiaire possuía coruja, gavião, lagarto e até cobra, pois ele, volta e meia, aparecia com um desses bichos na rua. No entanto, ela não sabia que ele tinha um novo animal de estimação.

- Cadê ele? Eu já vi? – perguntou.

- Você ainda não viu, Gabizinha, porque eu ainda não te mostrei. Você quer ver ele? – Hamixiaire se encurvou balançando a cabeça para cima e para baixo – Quer, Gabizinha? Quer?

- Eu quero. Onde ele está?

- Ele está aqui dentro de casa.

Gabriela nunca tinha entrado no barraco de Hamixiaire e por isso teve receio.

- Eu – disse apontando para si – entrar aí?

- É.

- Não sei. Acho que meus pais não deixam. Vou lá pedir eles.

- Não precisa pedir seus pais porque na minha casa você vai estar segura. Nada de mau vai te acontecer. E seus pais sabem disso porque eles me conhecem.

- E se minha mãe vier me procurar e não me ver aqui em frente de casa. Acho que ela vai brigar.

- Vai nada, Gabizinha. Se ela for brigar com você, pode me chamar que eu vou dizer pra ela que você estava na minha casa vendo o meu novo animal de estimação. Ou você não quer ver?

- Sim eu quero.

- Então vamos. Eu aproveito e toco aquela música que você queria ouvir.

- Tá!

A falta de malícia de Gabriela permitiu que ela fosse convencida pelos argumentos de Hamixiaire. Ela, portanto, entrou com ele dentro do barraco. Era um lugar frio. Parecia que ninguém habitava lá. Parecia que ninguém limpava o chão, as janelas e os móveis. O barraco estava escuro porque as portas e as janelas sempre ficavam fechadas. Mas, para não deixar Gabi com medo, assim que eles entraram, Hamixiaire acendeu a luz da sala.

- Cadê? – perguntou Gabi.

- Vem aqui que eu vou te mostrar.

Hamixiaire levou Gabi para seu quarto. Com um cheiro de mofo, o quarto de Hamixiaire estava uma bagunça. Lá dentro tinha duas gaiolas. Uma para a coruja e a outra para o gavião. A coruja dormia sossegada, mas o gavião parecia triste. Tristeza que se afastou por um instante com a presença da pequena Gabi.

Enquanto Gabi olhava para o gavião, Hamixiaire fingia que procurava seu novo animal de estimação. Ele olhava em baixo da cama. Dentro do guardarroupas, mas não encontrava. Foi neste momento que ele decidiu explicar para Gabriela que seu novo bicho tinha sumido. Hamixiaire se aproximou da criança. Começou a passar a mão na cabeça da pequena, alisando os cabelos dela.

- Gabizinha, não estou conseguindo encontrar o meu novo animal de estimação. Eu acho que ele subiu em você.

- Em mim?! – perguntou assustada. Aí, tira ele daqui!

- Calma, filha – disse Hamixiaire tentando acalmar Gabriela –. Esse animal não faz mal. Ele não morde.

- A não! Mesmo assim eu não quero ele em mim – ela falou quase chorando.

- Tá bom – concordou Hamixiaire –. Eu vou tirar ele de você, mas você vai ter que ficar bem quietinha, tá?

- Tá!

- Deixa eu ver se ele está aqui na sua blusa – Hamixiaire falou enquanto deslizava sua mão pelas costas da menina. Depois, passou a mão no peito e na barriga da criança.

- Ele não está aqui.

- Tá aonde então?

- Deixa eu ver se ele está na sua saia – Hamixiaire se agachou e começou a deslizar sua enorme mão pelas pequenas e magras pernas de Gabriela...

- Gabriela! Ô Gabriela!! Cadê você, minha filha!!

- Eita, é a minha mãe! Tira logo esse bicho daí.

- Espera. Não é tão simples assim. Você vai ter que esperar um pouco.

- Gabi!! – gritou a mãe da criança com voz não muito amigável.

Percebendo que sua mãe já estava perdendo a paciência, Garbriela ficou com medo. Resolveu não esperar e saiu correndo. Hamixiaire não pode segurar a menina porque ela saiu de repente e justamente quando ele estava distraído, pensando em como convencê-la a ficar mais tempo em sua casa.

A mãe de Gabriela ao ver de onde a filha saiu ficou muito preocupada, pois sabia da fama de pedófilo que Hamixiaire tinha.

- Mas menina, o que é que você está fazendo aí? Eu já te falei mil vezes que não era para sair da frente de casa! Venha cá.

A dona Paula pegou sua chinela, segurou a filha com a outra mão e começou a dar chineladas na pequena.

- Isso aqui é pra você aprender a não me desobedecer mais – avisou dona Paula depois de três chineladas –. Onde já se viu, menina, você na casa daquele vagabundo? – Paula deu mais três chineladas.

- Ai, mãe! – era a única coisa que Gabriela dizia enquanto chorava.

- Você vai querer voltar de novo para casa daquele sem vergonha, Gabriela? Vai?

- Não mãe. Eu juro que não mãe.

Depois de ouvir a promessa da filha, dona Paula, não satisfeita, deu mais três chineladas na pequena e a levou para casa.

- A partir de hoje você vai ficar de castigo. Não vai sair mais de casa.

Por uma brecha da janela, Hamixiaire acompanhou a surra que dona Paula deu em Gabriela. Ele, no entanto, não teve pena da pequena criança, mas ficou muito desapontado por não ter conseguido abusar dela. Por causa da tara por meninas como Gabriela, Haminiaire recebeu um novo apelido na rua. Aliás, em todas as periferias, quem abusava sexualmente de crianças era chamado de “Jack”. E Hamixiaire era o Jack daquela tão badalada rua.

No final da tarde, ao chegar do serviço, seu João ouve de sua mulher que Gabriela estava dentro da casa de Hamixiaire.

- O que? Por que você deixou ela ir para lá?

- Eu não deixei ela ir pra lá. Ela que foi sozinha, sem minha permissão.

- Mesmo assim. Você tem que tomar conta de nossa filha. Ela é só uma criança. Ainda não tem juízo.

- Mas, João, o tanto de coisa que eu tenho que fazer aqui dentro de casa... A Gabriela tem que me obedecer.

- Eu não quero saber.

Bigodudo, João era um homem de pavio curto. Por trabalhar durante muitos anos como pedreiro, o pai de Gabriela era forte, parecia que frequentava academia. Além dos músculos, João era alto, o que dava medo. Era por isso que ninguém daquela rua o encarava.

Ao saber da história contada por dona Paula, João ficou muito furioso e preocupado.

- Onde está Gabriela? Gabriela, venha cá!!

Ao ouvir a voz furiosa do pai, e depois de lembrar da surra da mãe, a pequena Gabi veio aos prantos.

- Não é para bater nela porque eu já bati – avisou Paula.

- Por que você está chorando? Eu ainda nem trisquei em você.

- Não é nada não, pai – respondeu amedrontada.

- O que você foi fazer na casa do Hamixiaire?

- Nada.

- Nada?! Conta essa história direito senão você vai levar outra surra e você sabe que minha surra é bem pior.

- Tá bom, pai – disse soluçando –. O Hamixiaire me chamou para ver o novo animal de estimação dele.

- E por que você não avisou para sua mãe?

- Porque o Hamixiaire disse que não precisava.

- Mas olha!! – João olhou para dona Paula –. Ele te mostrou o animal? Que bicho era?

- Eu não vi porque o bicho tinha subido em mim.

- Subido em você?

- É. O Hamixiaire disse que ele tinha subido em mim.

- E ele fez alguma coisa para tirar o bicho de você?

- Sim.

- O que?

- Ele passou a mão na minha blusa, atrás e na frente. Depois começou a procurar na minha saia...

Sem querer ouvir mais o que a filha dizia, João se levantou e caminhou em direção à porta da sua casa.

- Aonde você vai, João?

O pai de Gabriela não respondeu e continuou caminhando. Saiu de sua casa e foi procurar Hamixiaire. Não foi muito difícil encontrá-lo, pois ele estava na esquina acompanhado por Tião, Marciano e Jacinto. Hamixiaire ao ver João vindo em sua direção já pode imaginar o que ele queria, por isso, ficou em alerta e se escondeu atrás dos colegas. Sem querer enfrentar todos, João ameaçou.

- Escuta aqui, seu safado, da próxima vez que você triscar em minha filha eu te mato.

- Oxê! Você tá doido, João? – perguntou Tião.

- Doido nada. É esse safado aí que tava passando a mão em minha filha. Eu nem sei se ele fez mais coisas, mas, se eu ficar sabendo, não vou esperar uma próxima vez para quebrar a cara dele.

- Vem quebrar se você for homem – desafiou Hamixiaire, ao perceber que João ficou um pouco intimidado com a presença de Tião, o traficante da quadra.

- Não me provoca não, seu moleque! Você fala isso só porque você está acompanhado dos seus colegas.

- Não dá nada, João. Seu negócio é entre você e o Hamixiaire – disse Tião querendo ver o mal.

- Que é isso parceiro? – perguntou Hamixiaire.

- Ué, Hamixiaire, se você não se garante, para de provocar o bicho aí.

- Claro que eu me garanto, mas nos somos chegados e você tem que me ajudar a quebrar esse comédia aí.

- Que quebrar o bicho aí, moço! Você tá errado. Você sabe que na cadeia Jackão passa é mal.

- É isso aí. Ele tem sorte que eu não vou na polícia dar queixa dele – disse João –. Eu só tô avisando que da próxima vez que ele triscar na minha filha eu vou quebrar a cara dele e ainda vou chamar a polícia.

- Pode deixar isso quieto, seu João – disse o traficante –. Ele não vai mais tocar na sua filha porque, se ele fizer isso, quem vai resolver com ele vai ser eu. Você sabe que esse negócio de jackagem é mó tiração.

Enquanto Tião “passava o pano” no “grave” de Hamixiaire, Marciano e Jacinto apenas observavam calados. Mas ambos estavam de acordo com Tião. Eles também eram contra o abuso sexual de crianças.

Após o acordo estabelecido por Tião, João foi para sua casa. E o traficante disse para Hamixiaire.

- Ó bicho eu já falei para você parar com isso. Você teve sorte que eu tava aqui porque senão esse cara ia te pegar e ia te quebrar todinho.

- Que nada! Eu sou é faixa preta.

- Então porque você se escondeu atrás da gente? – perguntou Marciano.

- É mesmo – concordou Jacinto.

- Deixa ele. Eu já avisei. Dá próxima vez eu não tô nem aí – falou o Tião.

- Que isso gente? Eu não fiz nada com aquela menina.

- É, mas essa não é a primeira vez não – disse Jacinto.

- Pior que é mesmo – concordou Marciano –. Você já tem a fama na rua de Jack e eu já fiquei sabendo de várias histórias sobre você...

Todos ficaram calados. No momento, como modelos que desfilam numa passarela, Bruna e Camila caminhavam pela rua e se aproximaram deles. Sem piscar, Marciano era o que mais prestava atenção. Bruna tinha o cabelo liso, comprido e castanho claro. Ela usava um vestidinho bem curto e decotado. Rosto angelical e pele morena clara. Já Camila tinha o cabelo negro e encaracolado. Seu rosto era redondo e o nariz achatado. Olhos negros e pele também. Ela usava uma blusinha decotada e o shortinho bem curto. As pernas de ambas eram roliças e chamavam atenção. Ambas estavam maquiadas e com brilho nos lábios.

- Oi Tião – cumprimentaram as duas.

- E aê? Como é que é? Depois eu quero ver aquele lado com vocês duas pra depois nós pá, tá? – fez um gesto com as duas mãos, uma batendo na outra, como se a mão direita fosse uma faca e a esquerda uma taboa.

- Mais tarde a gente passa lá na sua casa.

Elas continuaram o caminho e se foram. Marciano, Jacinto e Hamixiaire estavam cansados de ver as belas jovens passarem pela rua, afinal, elas moravam lá perto. No entanto, eles não conversavam com elas. Somente Tião as conhecia.

- Ó í – Jacinto apontou na direção que Bruna e Camila se foram –. Por que você não se interessa por esse tipo de mulher, Hamixiaire?

- Essas barangas são muito metidas. Nem fala com a gente.

- Não fala com você – disse Tião.

- Qual daquelas você tá pegando, Tião? – perguntou curioso Marciano.

- As duas.

- As duas?!

Por dentro, Marciano se corroeu de inveja, pois, enquanto Tião ficava com duas mulheres, ele não tinha nenhuma.

- Oxê, você não viu aí não eu cobrando um esquema? Alí, parceiro, é só você arrumar 20 conto de pó e uma caixa de cerveja de latinha.

- Essas porras é tudo banda – protestou Marciano, mas no fundo, no fundo, ele queria ficar com uma delas.

Novamente eles ficaram em silêncio. Além de bater papo, uma das distrações dos colegas de esquina era observar as mulheres que passavam pela rua. E dessa vez quem passava por lá era a Benedita. Ela não era como Bruna e nem como Camila na aparência. Não andava maquiada. Com shortinho curto, saia curta ou blusinha decotada. Benedita era uma crentinha. Vestia-se comedidamente. Seu cabelo era encaracolado e negro. Sua pele morena. Benedita era magra, ainda assim, despertava o interesse dos homens da rua.

- Oi, meninos.

- Oi, Benedita – respondeu Marciano, enquanto os outros apenas balançaram afirmativamente a cabeça –. Você vai hoje na Panela de Barro?

- Eu vou e você?

- Eu tô pensando em ir.

- Aparece lá. Tchau.

Após Benedita se afastar, Marciano comentou.

- Tá vendo aí? Prefiro essa dona do que aquelas outras.

- Que nada, Marciano – disse Tião. Essa dona é mó santa do pau oco. Quem aqui da rua não pegou?

- Só o Marciano – apontou Jacinto –. Há, há, há!

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