Blog do Paraíso: Rua de Periferia

sábado, 11 de abril de 2009

Rua de Periferia

Capítulo I

Era uma vez uma rua muito badalada e que ficava numa cidade bem pobre de um país emergente – eufemismo de subdesenvolvido. A rua era badalada porque sempre estava movimentada, de cima a baixo. Não era uma avenida comercial. Apesar de extensa – tinha um quilômetro –, a rua era residencial. Ela possuía um cruzamento e muitas esquinas. O cruzamento ficava bem no centro da rua. Era como uma rosa dos ventos. Tinha o lado norte e o lado sul. O leste e o oeste. Enquanto no lado leste da rua havia 10 esquinas, o lado oeste não possuía uma sequer; tinha somente a entrada do cruzamento. As esquinas, porém, ficavam bem distribuídas. Na direção do norte, havia cinco e, para o sul, outras cincos.

A maioria dos moradores da rua não sabia o que era uma rosa dos ventos, por isso, as coisas eram muito simples. O cruzamento dividia a via em duas. Era o lado de cima e o lado de baixo. Quem morava na parte de cima não se entendia muito bem com quem morava na parte de baixo.

As esquinas de ambos os lados comumente ficavam repletas de jovens. Eles vinham de quadras diferentes e se misturavam com quem morava na rua.

Apesar de ser de uma cidade bem pobre, a rua era asfaltada e as casas possuíam calçadas, quase todas, sem lixeira. Logo, volta e meia, a via ficava cheia de lixo, que era recolhido uma vez ou outra pelos moradores. Eles não faziam mutirão para limpar a rua. Cada um, quando bem entendesse, resolvia varrer a frente de sua casa.

As calçadas eram feitas de concretos. Não existia nenhuma com grama. De todas as calçadas, somente duas possuíam árvores, que eram constantemente podadas porque senão elas poderiam se chocar com a fiação da rede elétrica.

As árvores não eram bem-vindas nas calçadas porque os moradores não queriam que elas fizessem sombra para os jovens das esquinas. Essa era a solução inútil para evitar que eles fumassem maconha na calçada deles.

Os bueiros estavam sempre entupidos pelo lixo. Quando chovia, a água formava enormes enxurradas. Só não acontecia inundação porque a rua era um pouco íngreme e não havia por perto nenhum rio.

As casas não possuíam estética nenhuma, somente funcionalidade. Eram feitas com o propósito de abrigo. Elas eram cercadas por muros que formavam pequenos caixotes. Um do lado do outro. Dentro de cada um, a casa, quero dizer, o barraco com, no máximo, cinco cômodos. As paredes, quando rebocadas, raramente pintadas.

De estatura média, pele negra, olho castanho escuro, cabelos encaracolados e nariz de coxinha, o jovem Marciano Justino era um dos moradores da rua. Seu barraco ficava na terceira esquina de cima para baixo. Aos 26 anos, ele ainda morava com os pais e mais dois irmãos.

Desempregado, Marciano passava o dia inteiro na esquina com outros jovens jogando conversa fora. Justino era um rapaz de bem. Nunca foi preso, nunca furtou ou roubou. Seu problema: ele gostava de encher a cara de vez em quando.

Seus colegas de esquina eram Jacinto, Tião e Zeca. Também morador da parte de cima da rua, Jacinto, aos 25 anos, não sabia o que era trabalhar de carteira assinada. Sua casa ficava do lado que não tinha esquinas, um pouco abaixo da moradia de Marciano. Jacinto raramente usava camisa. Cabeça sempre raspada, pele morena e tatuada, Jacinto era um pouco menor que Marciano.

Jacinto, atualmente, responde em liberdade por assalto à mão armada. Foi o único crime que cometeu na vida. Ele é viciado em maconha. Não há um dia que não fuma um cigarro. Sempre sustentado pela mãe, Jacinto nunca tinha dinheiro para bancar o vício. Para isso, ele conta com a camaradagem de Tião que sempre o convida para “dar um tapinha”.

Tião é um dos muitos jovens que saem de suas quadras para ficar lá naquela rua. Ele nunca foi preso por traficar drogas, mas por porte ilegal de armas. Por ser réu primário, também responde em liberdade. Filho único, Tião, 22 anos, mora somente com a mãe. Olhos castanhos e pele clara, Tião andava sempre com boné, ainda que seu cabelo fosse liso. Nariz afilado e de estatura mediana, ela nunca ficava sem namorada. Havia sempre duas ou três mulheres correndo atrás dele. Era o que deixava Marciano Justino inconformado. Justino nunca namorou na vida e não conseguia arrumar nenhuma mulher. Vendo a situação do amigo Tião, Marciano não entendia porque um cara de bem, como ele, era preterido por um traficante. Justino, portanto, sempre dizia “mulher é igual galinha: prefere comer merda em vez de comer milho”.

Um pouco abaixo do barraco de Marciano, mais precisamente na quinta esquina, morava Zeca. Ele andava sempre com um animal. Quando não era um mico, era uma cobra. Quando não era um lagarto, era um gavião. Aos 30 anos, Zeca morava só. Seu cabelo, liso e negro, era cortado de maneira social. Olhos castanhos e pele clara, as únicas tatuagens de Zeca eram duas pintinhas verdes no lado esquerdo do rosto.

Zeca tinha a fama de pedófilo, no entanto, ele se dizia religioso. Frequentava a Assembléia de Deus, inclusive, ele saiu dizendo para todos que, certa vez, Jesus o visitou. “Ele falou que era para eu mudar o meu nome para Hamixiaire”. O mais estranho era que Zeca, quero dizer, Hamixiaire só lembrava dessa história depois de usar drogas pesadas.

Essas quatro figuras se reuniam diariamente na esquina para conversar. Os assuntos variavam. Tião tinha a mania de falar sobre suas aventuras no mundo do crime. Jacinto contava histórias de outras quadras. Hamixiaire falava das criancinhas que gostaria de pegar. E Marciano apenas escutava. Ele era muito caseiro e não tinha muita história para contar. Aliás, as histórias que ele contava eram todas sobre as conversas que ouvia ou de fatos que ele via acontecer lá na rua, quando ficava na esquina sem o que fazer.

Certa vez, quando Zeca não estava presente, Marciano contou uma história que deixou Tião e Jacinto bastante admirados. Segundo Marciano, uma idosa de 90 anos, que caminhava bêbada pela rua e trazia consigo uns dois quilos de carne moída, tropeçou e caiu. Hamixiaire se solidarizou e correu para ajudar a senhora a se levantar.

- Cuidado, senhora! Assim você pode se machucar – disse Zeca, segundo Marciano – Olha só como ficou a sacola da sua carne moída. Sujou todinha. E a senhora então? Está precisando de um banho. Venha até minha casa que eu vou te ajudar.

Sem recusar o convite de Hamixiaire, a senhora foi com ele. Marciano, que olhava curioso da esquina de sua casa aquela cena, quis aguardar para ver quanto tempo a idosa passaria na casa de Zeca.

- Eles ficaram um tempão lá dentro – relatou Marciano. Depois, eu vi a senhora sair da casa do Hamixiaire, sem a carne moída e com os cabelos molhados, sinal de que ele deu um banho nela.

- Ele deve ter comido elas – sugeriu Tião.

- Eu não duvido nada – concordou Jacinto. Do jeito que o Zeca é tarado...

Para surpresa de Tião e de Jacinto, Marciano disse que depois foi conversar com Hamixiaire sobre o que ele tinha visto e, sem cerimônia nenhuma, o evangélico disse que o que aconteceu.

- Eu levei a velhinha para casa. Lá dei um trato nela, mas, antes, eu tive de banhá-la, pois ela estava fedendo muito. Em seguida, me deu uma fome. Lembrei da carne moída que ela trazia. Fritei e comi com arroz.

- Caramba... Esse Hamixiaire é muito doido mesmo, né bicho? – se espantou Tião.

- Há! Há! Há! – caiu na gargalhada Jacinto – Eu até imagino a cena.

Com pequenos intervalos para alimentação, a conversa na esquina durava, muitas vezes, o dia todo, passando para a noite.

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