Blog do Paraíso: Lição de vida do anônimo do dia-a-dia

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Lição de vida do anônimo do dia-a-dia


Encontramos diversos anônimos em nosso dia-a-dia. Para quem usa o transporte público, o número de anônimos é ainda maior. O motorista, o cobrador e os 48 passageiros sentados somam-se a outros 50 em pé. Os anônimos estão por toda parte. Estão nos milhares de carros que circulam pelas vias da Capital. No comercio. Na portaria do prédio residencial. No serviço geral. E foi um desses anônimos que me fez escrever este texto. Ele trabalha em um quiosque do tipo "copo sujo". Seu estabelecimento fica num ponto estratégico, próximo à parada de ônibus. Ali, no começo da W3 Norte. Além do local privilegiado, o quiosque oferece uma promoção quase irresistível, para quem anda com pouca grana. Um salgado mais um copo de suco saem por apenas R$ 1,50. A qualidade do alimento corresponde ao preço. A massa do salgado, confesso, não é das melhores. O suco não é natural, em contrapartida, não é de “pozinho da morte”. É um suco medíocre, mas saboroso. Para falar a verdade, de vez em quando, se você pedir os sabores de maracujá ou de goiaba, será servido com um delicioso suco natural. Dentre os salgados, o quiosque do anônimo oferece coxinha, pastel e enroladinho, todos com a mesma massa, ruim e dura. Mas desce. O anônimo trabalha com a mãe, uma morena de porte médio e que aparenta ter uns trinta anos. Nas primeiras vezes que freqüentei o quiosque, tive uma impressão ruim do anônimo. Toda vez que eu lhe fazia um pedido, ele ficava imóvel e olhava para a mãe. A mãe demorava. Eu insistia no pedido. E ele fazia cara feia e apontava para a mãe. Eu ficava pensando: “como pode um marmanjão desses com tanta preguiça. Por que ele mesmo não me atende? O que será que ele faz o dita todo aí?”. Mas, depois de um tempo, minha ficha caiu. Foi uma vez que encontrei o anônimo sozinho no quiosque. Antes de fazer o pedido, procurei pela mãe dele. Não encontrei. “Vai ter que ser ele mesmo”, pensei. “Me dá uma coxinha e um suco”, pedi-lhe. Movendo-se com dificuldades, o anônimo abriu a estufa, segurou dois guardanapos, que logo foram soltos em cima do salgado, de propósito, como se já estivesse habituado e se adaptado à situação. Isso porque o anônimo não conseguia fazer como uma pessoa sem a necessidade especial dele. Depois que os guardanapos estavam em cima do salgado, o anônimo, com muita dificuldade, pegou o alimento e me entregou. Em seguida, também com dificuldades, serviu-me o suco. O tempo que o anônimo usou para atender meu pedido era o triplo que sua mãe despendia para fazer a mesma tarefa. Só depois de ver toda aquela peleja que eu fui compreender porque o anônimo não me atendia quando sua mãe estava lá. Depois daquele dia, uma vez ou outra, eu faço um lanche rápido no quiosque. Também uma vez ou outra, o anônimo é quem me atende. E eu observo toda a dificuldade que ele tem para fazer isso. Fico admirando e refletindo. Que força de vontade. Que determinação. Vejo o anônimo como um verdadeiro professor. Professor que me dá uma lição de vida. E numa dessas aulas, eu, apressado, como das outras vezes, esqueci de fazer o pagamento ao anônimo. Dessa vez, eu tinha comprado somente um salgado, que me custou R$ 1. Só lembrei que não tinha pago o anônimo depois de entrar no ônibus. Pensei em descer e voltar. “Ah! Depois eu pago. Amanhã eu vou voltar aqui mesmo”, refleti. Durante a viagem, continuei refletindo. “É só R$ 1. Acho que não fará falta. E ele nem falou nada. Acho que até esqueceu de me cobrar”. Decidi não voltar lá para pagá-lo. Só que continuei refletindo. “O rapaz possui necessidades especiais. E se, por isso, ele achar que eu o fiz de besta. E se ele pensar que eu não lhe paguei justamente por que ele é daquele jeito.” Voltei atrás da minha última decisão e deliberei comigo mesmo que deveria pagar o anônimo. No outro dia, encostei-me no quiosque. A mãe dele dessa vez estava lá. Não falei com ela, fui direto ao seu filho. “Ontem eu estive aqui. Comi um pastel e não sei se eu te paguei. Você sabe se eu te paguei?” perguntei. Eu tinha certeza que não havia pago. Só fiz a pergunta para testar a sanidade mental do anônimo. Mas, para minha surpresa, ele respondeu “não”, de cara feia. Coloquei uma moeda de R$ 1 na mão dele e expliquei. “Eu bem que suspeitava que não tinha te pagado. Só fui perceber isso depois de entrar no ônibus, por isso que eu não te paguei. Mas aí eu pensei: amanhã eu passo lá e pago”. A expressão do anônimo já não era a mesma. “Eu também esqueci de te avisar”, ele disse um rosto mais amigável. A mãe observava a conversa também com expressão amistosa. Desejei-lhes um bom serviço e fui embora. Continuei refletindo. E percebi que agi com preconceito. Pensei que a deficiência na coordenação motora do anônimo afetava também seu juízo. E isso mesmo depois de nunca ter recebido um troco errado.

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